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A ESPERA PELA FELICIDADE
Comecemos com uma velha indagação filosófica de Platão, feita há cerca de 2400 anos: “Não é verdade que nós, homens, desejamos todos ser felizes?”[1] Um dos que respondeu a esta pergunta de forma precisa, cerca de dois mil anos depois, foi o matemático e filósofo francês Blaise Pascal, ao dizer que “todos os homens procuram ser felizes. Isso não tem exceção, por mais diferentes que sejam os meios empregados. Todos tendem para esse fim. (...). A vontade nunca faz o menor movimento que não seja em direção desse objetivo. É o motivo de todas as ações de todos os homens, até daqueles que vão se enforcar.”[2]
De fato, a busca pela felicidade é uma das coisas mais bem distribuídas do mundo[3]. Dessa forma, tentemos relembrar uma das principais razões de ser da filosofia, que é, segundo Epicuro, “uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”.[4]
Não importa se se trata das ações de um ser humano virtuoso ou vicioso. Ao analisarmos o móvel de suas ações, tanto de um quanto de outro, veremos que a busca pela felicidade é sempre uma constante. Tanto o sujeito caridoso, gentil e amoroso, ao agir assim, procura ser feliz, quanto o sujeito perverso e sádico, ao buscar no mal alheio um motivo de gozo, também procura com isso a própria felicidade. Claro que os conceitos de felicidade para um e para outro partem de premissas e interesses diferentes, porém isto, ao invés de nos desautorizar uma reflexão sobre o assunto, só torna a tarefa mais difícil e complexa.
Mas, então, o que é ser feliz? O que é preciso para ser feliz? Bastaria, como propõem Platão, Epicuro e Kant, “ter aquilo que se deseja”? Ou, se não tudo o que se deseja, pelo menos uma boa parte, a maior parte, do que se deseja? Mas aí, neste caso, cairíamos diante de dilemas que, longe de resolver o problema da felicidade, apenas o jogam para debaixo do tapete. Pois, “ora desejamos o que não temos, e sofremos com essa falta, ora temos o que, portanto, já não desejamos – e nos entediamos, como escreverá Schopenhauer[5], ou nos apressamos a desejar outra coisa.”[6]
Alguns exemplos são bem ilustrativos desse dilema que acabamos de invocar.[7]
Tal é o caso da criança que vive a ansiedade para ganhar seu presente de Natal ou de aniversário, pelo qual não para de sonhar, dia e noite, ao longo de vários meses. Essa mesma criança vive momentos eufóricos quando ganha o que esperava, mas só para, dali a pouco tempo, começar a se entediar pelo brinquedo, pelo qual sonhara, mas que então já não continua a ser uma novidade, não sendo objeto de seus desejos, posto que não mais lhe faz falta.
Semelhante é a situação do desempregado. Quais coisas são tão angustiantes quanto o desemprego? Tanto mais quanto o desempregado tem uma família, filhos pequenos com os quais se preocupa, para sustentar? “Quão feliz eu seria”, diz o desempregado, “se tivesse um emprego”. Mas isto parece só valer para o desempregado enquanto desempregado. Depois de conseguir trabalho, não raro o tédio se apodera dele, e o que antes lhe fazia falta passará a ser um tormento.
Outro caso interessante, narrado por Sponville, diz respeito ao seu espanto quando era criança e se apercebeu das dificuldades que um cego tinha para viver. “Se esse cego recuperasse a visão, seria loucamente feliz, simplesmente por enxergar! E eu, que não sou cego, devia ser loucamente feliz por enxergar.” Pronto! Estaria descoberto o segredo da felicidade! De agora em diante, vamos ser perpetuamente felizes, já que percebemos que a visão não nos falta! Porém... Nós não o somos. Pois é... Afinal, a visão – pelo menos a daqueles que podem ler este artigo – não é objeto dos nossos desejos.
Então a felicidade não passa de uma ilusão, ou melhor, de uma miragem? Estaria certo George Bernard Shaw quando disse que “há duas catástrofes na existência: a primeira é quando nossos desejos não são satisfeitos; a segunda é quando são”? Como sair, então, desse labirinto, que parece condenar a existência da felicidade à sua ausência?
De fato, parece ser inquestionável que vivemos uma cultura que encharca os nossos espíritos de esperança no futuro – que por definição ainda não existe, e que ontologicamente nunca vai existir – ou de saudades do passado – que, também por definição, nunca vai voltar ou mudar. Em um ou em outro, futuro ou passado, é que estaria o altar de nossa verdadeira felicidade.
Qual, então, o verdadeiro sentido da felicidade que devemos perseguir? Ou, lembrando de uma das perguntas filosóficas fundamentais feitas por Kant, o que devemos esperar?
Longe de pretender esgotar um tema tão rico, gostaríamos apenas de deixar uma sugestão: esperar um pouco menos, amar um pouco mais. Pois a felicidade é um caminho, uma viagem, não um destino ou um porto de chegada. O navegador brasileiro Amir Klink nos legou uma imagem bem representativa do que é isto ao completar sua travessia do oceano atlântico a remo, em 1984. Após 100 dias de viagem solitária, durante os quais ele enfrentou riscos e perigos os mais diversos, ele parecia não querer deixar seu barco nem o mar. Tendo ancorado a cerca de 30m de uma praia de Salvador, ele simplesmente sentou-se na proa e, com os pés mergulhados n’água, não demonstrava qualquer ansiedade de “pisar na areia” e terminar a viagem. Ao invés disso, ele muito mais lamentava o fim da viagem, por meio da qual tanto tinha aprendido e sido feliz.[8]
Importante destacar que a renúncia à “espera”, enquanto referencial de felicidade, não significa que devamos deixar de considerar o futuro. De modo algum. Antes, porém, é necessário aprender a pensá-lo, a querer e a amar melhor. Nas palavras do próprio Sponville, não podemos:
“viver uma vida reduzida à sua pura instantaneidade presente, renunciando a qualquer futuro, a qualquer projeto, a qualquer antecipação. É claro que não poderia ser assim: seria a vida de um animal, amarrado ‘na estaca do instante’, como dizia lindamente Nietzsche, e o contrário do que buscamos (uma vida mais humana, mais livre, mais vasta). (...).
Não se trata de renunciar a toda e qualquer relação com o futuro, o que não podemos, o que não devemos, mas sim de transformar nossa relação com ele: passar da esperança à vontade, à prudência, como diziam os Antigos, à paciência, à confiança, à antecipação lúcida ou sonhadora, conforme os casos, à imaginação lúdica ou resoluta. (...). Quem não gosta de sonhar, nas férias, diante das casas que não tem, que imagina habitar? E quem não vê que isso é bem diferente de ‘esperar ter uma casa’, o que é uma infelicidade, se não temos, ou em todo caso o sinal de uma insatisfação, se temos... Você pode perfeitamente gozar por antecipação tal prazer anunciado, por exemplo, uma viagem, prevê-la, prepará-la, saboreá-la, por assim dizer, de antemão. Quer isso dizer que você deposita uma esperança na viagem? Claro que não: você sabe que vai fazê-la, e é por isso que é tão bom sonhar com ela. Não é esperança, é confiança, antecipação, imaginário, e estaria errado quem se privasse disso!”[9]
Portanto, busquemos a felicidade, mas imersos no presente, que é o único tempo de se viver, de executar projetos, de ser feliz. Foi o que nos recomendou Jesus no sermão da montanha ao dizer “Olhai os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; e eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda sua glória, se vestiu como um deles. (...) Não vos inquieteis, pois, com o dia de amanhã, porque ele cuidará de si mesmo. A cada dia basta o seu mal”[10]. Mas leiamos bem: não devemos nos preocupar com “o dia de amanhã”! Ele não nos disse que não devíamos “nos preocupar” com “o dia de hoje”! Renunciar à espera não significa que não devamos viver o agora ou, pior, viver o dia de hoje irresponsavelmente. Significa antes que devemos resolver nossos problemas e dificuldades no presente; ser felizes no presente; dando a ele sua devida importância, inclusive a de ser parte indispensável na construção de nossos projetos – mas projetos lúcidos, prudentes, razoáveis – de felicidade futura; aprendendo a amar a vida e as pessoas no presente.
Contudo, não conseguimos amar. E é por isso, por não conseguirmos amar, ou por amarmos ainda tão pouco e a tão poucos, e tão mal, que devemos primeiro aprender a vivenciar as virtudes, que são como que uma espécie de preparação para o amor[11].
Esperemos um pouco menos, amemos um pouco mais. Talvez assim consigamos nos livrar da sina diagnosticada por Pascal, para quem “nunca vivemos, esperamos viver; e, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que nunca sejamos”.[12]
[1] Eutidemo, 278 e.
[2] Pensamentos, parágrafo 148 (425).
[3] Não podemos afirmar categoricamente que seja “a mais bem distribuída”, pois com ela concorrem, segundo outros pensadores, o medo (Luc Ferry), o bom senso (Descartes), a estupidez (Frank Zappa), dentro outras coisas.
[4] Fragmento 218.
[5] É desse filósofo alemão uma das frases que, segundo Sponville, é uma das mais tristes da história da filosofia: “‘A vida oscila, pois, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tédio’. Sofrimento porque eu desejo o que não tenho e porque sofro com essa falta; tédio porque tenho o que, por conseguinte, já não desejo” (In A Felicidade, Desesperadamente!, p. 35).
[6] Extraído do livro A Felicidade, Desesperadamente!, p. 27, de André Comte-Sponville.
[7] Os três exemplos citados a partir daí são extraídos da obra A Felicidade, Desesperadamente!, de André Comte-Sponville, pág. 29.
[8] Ver o livro 100 Dias Entre o Céu e o Mar, de Amyr Klink.
[9] Extraído do livro A Sabedoria dos Modernos, de André Comte-Sponville (em co-autoria com Luc Ferry), pág. 312.
[10] Mateus, 6, 28-29 e 34.
[11] A esse respeito, estudando as virtudes como uma espécie de “ensaio” para o amor, ver o excelente livro Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, de André Comte-Sponville.
[12] Pensamentos, parágrafo 47 (172).
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