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Sobre os meios de conhecer os progressos que fazemos na virtude[1]
Plutarco [2]
Que meio teríamos para assegurar-nos dos progressos que fazemos na virtude, se o vício, longe de enfraquecer sensivelmente à medida que avançamos no bem, nos domina sempre com a mesma força, e continua a nos arrebatar, como se vê a rede arrastada pelo chumbo para o fundo das águas? Aqueles que aprendem a música ou a gramática, poderiam reconhecer em si mesmos o menor avanço, se, à medida que estudassem as regras dessas matérias não sentissem diminuir sua ignorância, e se estivessem sempre tão pouco instruídos sobre os objetos que essas duas artes tratam? Um enfermo perceberia alguma diferença em seu estado, durante o curso de sua doença, se os remédios não lhe proporcionassem nenhum alívio? Se o mal se mantivesse sempre com violência até o momento em que sobreviesse, repentinamente, uma saúde plena?
Não se pode, em todos os casos, reconhecer em si verdadeiros progressos, a menos que a passagem sucessiva a uma disposição contrária, nos faça sentir uma diferença real em nosso estado. Nos dois pratos de uma balança, um sobe à proporção que o outro desce. Assim, no estudo da filosofia[3], é impossível perceber em si algum progresso, se a alma não se purificar pouco a pouco de suas impurezas, se, até que atinja uma virtude perfeita, o vício a domina sem nenhuma mescla de bem.
Para passar, assim, de repente, da extrema corrupção à mais plena sabedoria, seria preciso que num instante, quase insensível, pudéssemos nos despojar de toda nossa maldade, enquanto não tivéssemos podido, num espaço de tempo considerável, diminuir-lhe a mínima parte...
Para nós que observamos que em todo gênero de mal, e principalmente nas desordens da alma, o vício é sempre mais ou menos grande, na proporção dos progressos que fazemos no bem; que ele diminui e se apaga pouco a pouco como uma sombra, à medida que a sabedoria vem esclarecer e purificar a alma, cremos poder assegurar que essa passagem do vício à virtude deve ser sensível àqueles em quem ela se opera; que a alma se desprende e se eleva sucessivamente do meio de seus vícios, como do fundo de um abismo, e julga sobre seus progressos pelo caminho que percorreu. Tais como os viajantes que estendem velas num mar imenso calculam a duração de sua navegação e a força do vento que os impulsiona, por conhecer, combinando uma e outra, o espaço que percorreram. Da mesma forma podemos julgar com segurança se fizemos progressos na filosofia, quando nossa marcha não é uma alternativa contínua de repouso e de caminhada, mas que, sob a condução da razão, avançamos sempre na direção do termo, num passo igual e seguro. Esta máxima de Hesíodo, o pouco, frequentemente repetido, faz logo uma soma, não vale somente para o dinheiro que amontoamos; ela também é aplicável a tudo, e principalmente aos progressos no bem: atos frequentes de virtude fazem a alma contrair esse hábito feliz cujo poder é sempre tão grande. Mas os desequilíbrios e a frouxidão não somente paralisam os progressos que poderíamos fazer, como os descansos frequentes retardam a marcha do viajante e produzem ainda um sensível enfraquecimento: o vício aproveita sempre desses relaxamentos para nos fazer recuar, e nos envolver mais fortemente em seus laços.
Os astrônomos dizem que os planetas estão estacionários, quando fixam neles a atenção. Mas a prática da sabedoria não admite essa espécie de descanso. A alma, constantemente em movimento e como que colocada sobre uma balança, está sempre elevada pela atividade da virtude, ou rebaixada pelo peso do vício.
Os habitantes de Cirrha[4] perguntaram ao oráculo como eles poderiam viver em paz em suas casas. Ele respondeu-lhes: “Fazendo noite e dia guerra ao exterior.” Se, conforme o sentido desta resposta, podeis testemunhar que noite e dia declarais a vossas paixões uma guerra infatigável; se, firmes no posto que a virtude vos confiou, recusais todas as trevas que o vício vos propõe, sob pretexto de um prazer passageiro, de um relaxamento útil, ou mesmo de uma ocupação importante, tenhais então uma justa confiança em percorrer felizes a carreira.
De resto, quando vossa caminhada for algumas vezes interrompida, desde que esses relaxamentos sejam raros, e prontamente reparados por um ardor mais firme, não vos desencorajeis: é uma prova de que o trabalho e o exercício começam a domar em vós a oposição ao bem, e que acabarão por triunfar sobre ela. Teríeis mais a temer se esses intervalos fossem longos e frequentes. Eles anunciariam que vossa atividade se esfria e vai logo extinguir-se.
Vede como os primeiros caniços de bambu se elevam com graça; como soltam longas hastes retas e unidas, que não são cortados senão a grandes distâncias: mas em seguida, o ar que as fez subir, estando como que enfraquecido por seus primeiros esforços, é abatido, por assim dizer, por uma força superior que impede seu impulso; então, esses brotos são mais curtos e quase sempre intercalados por nós. Da mesma maneira, entre os que se entregam à filosofia, há os que, após ter começado sua caminhada com o maior ardor, são frequentemente detidos em sua marcha; não se aperceberam de nenhum progresso na virtude; caem pouco a pouco na indiferença, e acabam por abandonar seu empreendimento. Outros, ao contrário, mais constantes, mais animados pelo desejo de chegar ao fim, transpõem num só voo rápido todos os obstáculos de que a multidão importuna se esforçara para retardar seu curso. (...)
Quantas pessoas parecem, a princípio, amar a filosofia e a ela se entregar com ardor! Mas se outros cuidados vêm lhes distrair, seu amor por ela se desvanece, e eles lhe suportam facilmente a privação. Mas aquele em quem ela penetrou de um amor verdadeiro parece tranquilo e moderado, quando goza de suas conversas. É ele obrigado de afastar-se dela? Vemo-lo inquieto, agitado, ardendo de impaciência, indignar-se contra os afazeres importunos, e tudo deixar, até mesmo seus amigos, para seguir com impetuosidade o desejo que o arrasta.
Respiramos por um momento, com prazer, o odor de um agradável perfume. A sensação passou? Não excita em nós nem desejo, nem pesar. O estudo da filosofia deve produzir em nós um efeito muito diferente.
Não é somente de nossa fraqueza que devemos temer essas impulsões secretas que nos desviam do bem. Os conselhos que nossos amigos nos dão de boa-fé, as zombarias picantes de nossos adversários, nos enfraquecem e nos abalam; nossa caminhada se retarda, e algumas vezes até renunciamos à filosofia. É preciso opor a uns e outros igual tranquilidade de alma, e não sentir nem perturbação nem inveja secreta, quando eles vêm nos dizer com afeição que alguns de seus amigos gozam na corte da mais alta fortuna; que fizeram casamentos opulentos; que desfilaram na praça pública seguidos de uma turba numerosa para tomar posse de um cargo, ou defender um assunto importante.
Um homem insensível a todos esses discursos mostra que está verdadeiramente enamorado pelos encantos da sabedoria.
Com efeito, para não mais desejar o que o comum dos homens busca com tanto ardor, é preciso ter estima e admiração apenas pela virtude. Uma forte resistência às vontades dos outros nos é algumas vezes inspirada pela cólera ou pela imprudência; mas um desprezo geral pelo que a multidão admira não pode vir senão de uma verdadeira grandeza de alma.
É por aí que os homens virtuosos, comparando com os bens da fortuna aqueles que eles adquiriram por si mesmos, sentem muito bem todas as vantagens destes últimos. (…)
Agésilas ouvia chamar o rei da Pérsia de o grande rei, então disse: “Como ele seria maior que eu, se não é mais justo”?
Aristóteles escreveu a Antipater, a respeito de Alexandre, que esse príncipe não era o único a ter o direito de se crer grande por possuir um vasto império; que todo homem que tenha ideias exatas da Divindade, não tem menos direito ao título de grandeza. Zenon[5], vendo que Theophrasto era admirado por causa do grande número de seus discípulos, falou: “Seu auditório é mais numeroso, o meu é mais de acordo.”
Aquele, pois, que reconhece a superioridade da virtude sobre os bens da fortuna, não sente por eles nenhum desejo, nenhum desses movimentos que afetam vivamente o coração, e muitas vezes até desencorajam, mesmo à entrada na carreira filosófica, aquele que crê, por possui-los, ter feito progressos reais no bem.
Considerai, ao ler os escritos dos filósofos, ou ao escutar suas lições, se não vos ocupais mais com as palavras que com as coisas; se não vos apegais de preferência ao que há de brilhante e de sutil, ao que contém de útil e de sólido. Quando ledes a poesia ou a história, observai com cuidado se não deixais escapar nada do que pode servir para reformar vossos costumes e a curar vossas paixões.
A abelha, diz Simonides, voa sobre as flores e delas extrai o suco para compor um mel requintado, enquanto outros nelas não buscam senão o que pode agradar a vista e o nariz. Assim, muita gente não busca na leitura dos poetas mais que divertimento e prazer. Aquele que sabe observar o que neles tem de útil, e disso se apropriam, mostra que um longo hábito lhe tornou familiar o sentimento do belo e o apreende em toda parte onde o encontra. Aqueles que não apreciam, em Platão e em Xenofonte, mais que as graças do estilo, que não se ligam a essa flor de aticismo em que brilham seus escritos semelhantes a essas gotículas com que o orvalho cobre os frutos, não os podemos comparar com homens que apreciam um remédio unicamente por sua cor ou seu odor agradável, e não fazem nenhum caso da virtude que ele pode ter para acalmar suas dores, ou para evacuar os humores? (…)
Observemos cuidadosamente o motivo que nos leva a falar; vejamos se não é o nosso interesse que temos em vista; se, em vez de falar para nossa própria instrução ou a dos auditores, não buscamos a vã glória e a ostentação; evitemos sobretudo colocar nossa obstinação na discussão; entregar-nos ao gosto pela disputa; fazer de nossas controvérsias uma espécie de jogo de esgrima, em que sejamos mais sensíveis ao prazer de derrubar nossos adversários, do que pela vantagem de ensinar ou de aprender coisas úteis.
Não há prova mais certa dos progressos que fazemos na virtude, do que ser suave e moderado nessas ocasiões, de não comprometer uma conferência unicamente pelo prazer de disputar, de não a terminar com arrebatamento, de não tratar com orgulho seu adversário, quando o vencemos, e não se azedar com a própria derrota. (…)
Não é somente sobre nossos discursos que devemos vigiar, mas também sobre nossas ações, a fim de verificar se elas tem mais solidez do que aparência, mais verdade do que ostentação.
Quanto mais um homem verdadeiramente enamorado do belo e do bem, e cujas ações se unem intimamente à virtude, deve regozijar-se no silêncio? Plenamente satisfeito, teria ele que desejar outras testemunhas de sua felicidade além de sua própria consciência? Ou deveria ser como o homem que gritava ao seu escravo: “Veja que não tenho mais orgulho!”
Aquele que se apressa a publicar o bem que fez mostra que é sensível a uma glória vã, e que busca aprovação fora de si mesmo. Um tal homem ainda não contempla a virtude; ele não a percebeu senão em sonho, através de véus e de sombras; é segundo essa frágil visão que, representando por suas ações a imagem que dela formou, apressa-se em expô-la aos olhos dos expectadores. Mas aquele a quem a virtude se mostra em toda sua beleza, e que conhece bem o seu preço, não se limita a calar os serviços que presta a seus amigos. Se, em um julgamento, opinou com justiça, malgrado a prevaricação da maioria dos juízes; se desprezou as solicitações injustas de um homem rico ou poderoso; se rejeitou os presentes que lhe foram oferecidos, se suportou a fome e a sede, ou resistiu, como Agésilas, aos atrativos da volúpia, ele sepultou no silêncio essas ações virtuosas. Contente com seu sufrágio, sem no entanto desprezar o dos outros, ele acredita ter em sua consciência um testemunho e um juiz bastante esclarecidos. Mostra, por essa conduta, que a sabedoria lançou profundas raízes em sua alma, e que está acostumado, segundo Demócrito, a buscar sua satisfação em seu próprio coração…
Os enfermos que têm apenas indisposições leves, vão eles mesmos encontrar o médico. Quando a febre os retém ao leito, eles pedem que chamem o médico para lhe tratar; se sofrem de frenesi, demência ou furor, cuja violência os impede de perceber seu estado, expulsam o médico ou eles mesmos fogem. Assim, quando os homens viciosos se irritam com os conselhos que se lhes dá, e tratam como inimigos aqueles que os repreendem, devem ser considerados incuráveis. Se escutam de boa vontade, estão perto da cura.
Nada prova melhor que se fez grandes progressos na virtude do que ir, por si mesmo, depois de cometer uma falta, encontrar um médico, expor-lhe seu estado, mostrar as chagas secretas de sua alma, e pedir-lhe o remédio. Para se tornar homem de bem, dizia Diógenes, é preciso ter, ou um amigo sincero, ou um ardente inimigo, para que os conselhos de um, ou as censuras de outro, nos afaste do vício.
Há pessoas que, por uma falsa modéstia, e para dar-se a reputação de homens agradáveis, são os primeiros a fazer gracejo sobre os defeitos de sua estatura e dimensão corporal, ou de sua vestimenta, enquanto escondem com o maior cuidado sua avareza, a malignidade, a inveja, o gosto pela volúpia, e todas as outras chagas de sua alma. O temor de suportar as censuras faz com que não queiram deixar ninguém ver nem tocar suas chagas; é ter feito bem pouco progresso na virtude ou, antes, é não ter feito nenhum.
Se, ao contrário, longe de entregar-nos sem remorso às nossas paixões, temos a coragem de censurar nossas faltas, ou, pelo menos aceitar que outrem nos repreenda, é uma prova de que nossos vícios nos humilham e queremos domá-los por completo. Isso não significa que não devemos corar por sermos viciosos; mas quando temos mais horror do próprio vício do que da vergonha que o segue, não tememos deixar que homens virtuosos conheçam o verdadeiro estado de nossa alma. Deles recebemos, sem pena, censuras que nos podem tornar melhores. Um jovem que estava num cabaré, tendo percebido Diógenes, escondeu-se rapidamente. “Ei, meu amigo, gritou o filósofo, quanto mais tu te escondes nesse cabaré, mais te afundas nele.”
Assim os homens viciosos, escondendo suas desordens, nelas mais mergulham, tornando-se cada vez mais seus escravos; parecem-se com esses pobres que fingem ser ricos e se reduzem, pela própria vaidade, a uma miséria ainda maior.
A total isenção de paixões é uma disposição perfeita que não convém senão a Deus, e nosso progresso na virtude não consiste em destrui-las por completo, mas em educá-las e dominá-las. É preciso, então, examiná-las em si mesmas, comparando umas com as outras para julgar, pelas diferentes disposições de nossa alma, o progresso que fizemos. Primeiro, examiná-las por elas mesmas para ver se a cupidez, o medo e a cólera nos dominam menos que antes; se a razão tem sobre elas mais império para reprimir prontamente seu ímpeto e lhes aplacar o fogo. Em segundo lugar, compará-las umas com as outras; considerar se estamos mais sensíveis à vergonha que ao medo; se temos mais emulação que inveja, mais desejo de glória do que amor pelas riqueza; em uma palavra, se as dissonâncias de nossos costumes se ressentem mais, por assim dizer, do excesso do modo dorien[6], naturalmente grave e sério, que do modo lydien[7], mais vivo e mais leviano, isto é, se nossa maneira de viver tem mais austeridade que moleza; se em nossos empreendimentos somos mais circunspectos que imprudentes; se temos pelos homens e por seus discursos uma admiração excessiva, ou um desprezo exagerado. Quando as enfermidades passam das partes nobres do corpo para outras menos essenciais, é sinal que a cura está próxima. Assim, quando as paixões se desnaturam e se portam sobre objetos mais moderados, podemos crer que logo elas desaparecerão inteiramente, e serão substituídas por virtudes.
Não devemos nos deter em discursos estéreis, mas praticar ao mesmo tempos que nos instruímos. Uma prova certa de que temos essa disposição é, por um lado, o zelo e o ardor para imitar o que admiramos; por outro, o afastamento de tudo o que nos parece censurável. Todos os atenienses, sem dúvida, louvavam a coragem de Miltíades, mas Temístocles, que dizia que as vitórias de Miltíades o impediam de dormir, e o acordavam em sobressalto durante a noite, deixava claro que a admirava e queimava de desejo de imitá-la.
Se quisermos nos assegurar de que fazemos progressos sólidos na virtude, não devemos considerar nenhuma falta como leve, e evitá-las todas com o maior cuidado. Quando não se tem nenhuma esperança de ficar rico, não se levam em conta as pequenas despesas, porque as economias módicas que se fizesse não significariam um objeto muito importante. Todavia, os que têm esperança de ficar ricos um dia, quando mais se aproximam do objetivo, mais sentem crescer o desejo de economizar, a fim de aumentar suas riquezas. Assim, quando desejamos adquirir a virtude, e temos a justa confiança de lograr êxito, ficamos atentos às mínimas coisas; não nos permitimos nenhum afastamento com a desculpa de que não terá consequência e que de outra vez faremos melhor: vigiamos com cuidado cada uma de nossas ações. Indignamo-nos com as faltas mais leves que escapam de surpresa, e que pareceriam as mais perdoáveis. Essa disposição prova que a alma está purificada de suas manchas, e não quer contrair novas. Mas quando estamos persuadidos de que o pouco de virtude que adquirimos não merece o cuidado de aumentá-la, essa opinião, segundo Ésquilo, nos torna negligentes e distraídos com relação às nossas faltas.
[1] Beautés des Œuvres Morales de Plutarque, tome premier. Chez Belin-Le-Prieur, Librairie. Paris, 1835. Traduzido pela equipe do Filosofia no Ar.
[2] Filósofo, historiador e biógrafo grego, nasceu por volta do ano 49 e morreu no ano 125 da Era cristã. (N.T)
[3] A filosofia significava para os gregos “amor pela sabedoria”, ou a busca da virtude. (N. T)
[4] Cirrha, ou Crissa, cidade da Phocide, ao pé do Mont-Parnasse.
[5] Zenon, o fundador da seita estóica, era da ilha de Chipre. Theophrasto, da ilha de Lesbos, foi inicialmente discípulo de Platão, em seguida de Aristóteles, ao qual sucedeu.
[6] De Doride, cantão do sudeste da Ásia Menor, na Antiguidade. (N.T)
[7] Da Lydia, província da Ásia Menor. (N.T.)
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